segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Poesia portuguesa contemporânea - Ana Hatherly

dar-se
entregar-se
o querer no outro transformar-se

cegueira esplêndida esta
vitória álacre e suma desgraça

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Poesia Portuguesa contemporânea - Herberto Helder

Herberto Helder nasceu em 1930, em Funchal, na Ilha da Madeira. Ainda vive e escreve. É, na minha modestíssima opinião, o melhor poeta Português ainda em atividade. Mais. Depois de Camões e Fernando Pessoa, é o maior poeta a escrever neste idioma que massacramos todos os dias.

Lembro, como se fosse hoje, como se estivesse lá, agora, do dia em que entrei na livraria cultura e me deparei com o colossal "Ou o poema contínuo". Lembro que na universidade havia lido algo dele, mas nada que se comparasse ao que estava ali na minha frente. Que descoberta, quanta fúria ali condensada. Lembro que passei várias noites sem dormir direito, degustando cada página, sentindo o cheiro das metáforas e suas infinitas possibilidades criativas. Acomodei-o na estante ao lado de João Cabral e Cecília Meireles, poetas que ele, Helder, admira e admite a influência. Herberto Helder nos mostra, nesse poema, como falar de amor, como soltar o grito lírico sem cair em clichês ou metáforas gastas, carcomidas. Oh! Poeta, louvo a tua voz grave de urso. Apartados pelo Atlântico, irmãos no infortúnio. 

TRÍPTICO (2º trecho)

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço -
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.

(Herberto Helder)

Ou o poema contínuo
Herberto Helder
Ed. girafa 
535 páginas
R$49,00

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

"Toda a arte aspira ser música"

Quem nunca se surpreendeu ao sentir o gosto de um cheiro? Ou respirar um aroma doce de manga madura e sentir o seu gosto como se a estivesse mordendo? Quem nunca, ao ouvir uma música, lembrou dos cheiros e sabores de alguém? Os nossos sentidos falam. E dizem muito mais a respeito do mundo do que milhares de tratados e enciclopédias. Uma obra de arte nos emociona quanto mais fale aos nossos sentidos.

Depois de perceber isto é que pude compreender a real grandeza do título deste post, retirado de uma citação do crítico Americano Walter Pater. Ele argumenta sobre a primazia da música sobre todas as outras expressões artísticas. Desde um quadro, um poema, uma escultura, tudo buscaria o ritmo e a harmonia (ou a ausência destes) inerentes à música. Beethoven estava praticamente surdo quando terminou a 9ª Sinfonia. Nunca a ouviu terminada. Apenas intuía sua melodia grandiosa, respirava seu movimento pelas hastes dos violinos. Ainda que Beethoven tenha sido um gigante, ninguém ousou tocar a superfície da música, penetrar em seu centro, como Fernando Pessoa o fez através da poesia. Sobretudo através dele mesmo, não com os heterônimos. Sobretudo no livro "Cancioneiro", do qual extraí o poema abaixo:

Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
enche-se de lágrimas
meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
nessa minha infância
que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
fui-o outrora agora.

[Fernando Pessoa - anterior a 1924]

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Oscar Wilde ou "O sedutor que apodrece"

Escrevi este poema em 2005, após reler "A balada do cárcere de Reading", de Oscar Wilde. O livro foi publicado em Londres, a 13 de Fevereiro de 1898, pela livraria Leonard Smithers, após ter recusada sua publicação por diversas outras editoras.

Depois de um conturbado e ruidoso processo judicial por sodomia, e suas nefastas reverberações, Wilde foi condenado à prisão em Abril de 1895. Condenado pela hipocrisia moralista da "Era Vitoriana", ele foi trancafiado, primeiro na prisão de Holloway, passando depois por Newgate, Reading e, por fim, Pentoville. Em Reading, Wilde ficou impressionado com os olhos tristes de um soldado da Real Guarda Montada, batalhão de elite do exército Inglês, condenado à forca pelo assassinato de sua jovem mulher.

Fico imaginando o olhar de quem sabe da proximidade da morte. Seus passos indecisos rumo à forca.

Diferente de Wilde, nunca tive essa oportunidade. Mas imagino-a. E para esse infeliz, tão distante e tão próximo em seu infortúnio, escrevi este poema:

Ainda que o cadafalso
seja apenas leve sombra
por entre as cerejeiras,
esticai a corda,
áspera, ao extremo.

Ninfa no poço
úmido
do teu pescoço.
Acordai os velames.
As tábuas a ranger
rompendo o silêncio dos girassóis.
Doce lira
que se expande
quando esperavas tempestade.

Ó enforcado de todas as horas,
o teu hálito degredado
caminhará
por ilhas bruscas
de deitar demônios.

Segue o ruído de tua alma,
sopro do que és.
Não obstante, seguirás
por um caminho de medrar lilases.

Ainda que sambemos
sobre o teu esquecimento.

Da inutilidade de manter um blog

Na história da literatura, são inúmeros os casos de poetas silenciados. Lautréamont e Rimbaud são os mais emblemáticos. Não apenas pela força do que "diziam" em seus versos, mas, sobretudo, pelo gigantesco silêncio que gravitava em torno deles. Fernando Pessoa, poeta mais citado do que realmente lido, dizia que "Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espetáculo."  Um intervalo de solidões compartilhadas no silêncio do efêmero.
Um silêncio que aumenta com a intensidade da penumbra. Grandes poetas, e poderia citar aqui uma infinidade deles, não são, não foram lidos em suas respectivas épocas. Alguns, nem a posteridade reconheceu, a exemplo de Tristán Corbiére e Julian Laforgue. É sobre este silêncio, esta ausência de interlocutores, a que me refiro quando questiono a inutilidade de um blog. Sobretudo a de um que se disponha a falar sobre literatura, poesia, música, cinema e outras futilidades afins, tão desimportantes no mundo de hoje.

Com a ascensão das redes sociais, muito se fala, muito se discute, a respeito do fim dos blogues, esse anfiteatro cibernético da vaidade humana. Inaugurar, hoje, um blog, é seguir na contramão da pseudomodernidade. Nunca gostei de hegemonias. Sempre me identifiquei com vagabundos e degredados. Talvez por isso, esteja aqui. Ainda que sem leitores. Ainda que silenciado. Mas assim como Rimbaud, Lautréamont e tantos outros, não saberia calar a minha voz. Ainda que esta não esteja à altura grandiosa daqueles.