quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Ted Hughes e Sylvia Plath: a vida naufragando

Quando Ted Hughes e Sylvia Plath se casaram, em 16 de Junho de 1956, a vida em comum parecia apenas o início de uma deslumbrante e fértil convivência. Inteligentes, jovens, (bons) poetas, tudo conspirava para qualquer coisa próxima de um futuro magnífico.

Mas havia a vida e seus fantasmas insistindo em existir. E eles logo dariam as caras naquela promessa de deslumbre. Ted, Inglês típico, sem grandes aspirações a não ser lecionar e escrever seus poemas lúgubres. Gabava-se de ter apenas algumas poucas peças de roupa no armário. Não precisava de muita coisa além de uma calça de brim e um velho e surrado paletó de tweed.

Sylvia, obcecada por uma carreira que levasse seu nome para além do Atlântico Norte, em primeiro lugar, e depois, para o outro lado do Canal da Mancha. Influenciada pela mãe, viva, que a queria famosa e rica; e pelo espectro do pai, morto.  Ela tinha apenas oito anos quando ele partiu. O "ilustre pai morto" e uma certa "americanidade ansiosa" de Sylvia Plath, foram os principais "fantasmas" na vida dos poetas. 

"Massacrada por seus padrões de excelência e ambiciosa além da conta, ela (Sylvia) seria prisioneira de uma ansiedade sem cura, escrava do seu medo de errar, vítima inevitável do terror de não corresponder às expectativas de que se tornara objeto", define Leonardo Fróes na nota introdutória ao excelente "Cartas de Aniversário", obra póstuma de Ted Hughes. 

Após sete anos de casamento, muitas brigas, vários poemas e uma filha, Sylvia suicidou-se ligando o gás e enfiando a cabeça no forno de um fogão velho. Grupos de feministas, defensoras de uma moral banguela, vieram em defesa da memória de Sylvia, acusando Ted de assassino, marido infiel, dentre outras tolices. Os ataques recrudesceram, sobretudo depois do suicídio de Assia Wevill, mulher com a qual Ted se casara após a morte de Sylvia, alguns anos depois.

Durante todos esses anos, Ted Hughes silenciou. Em 98, ao descobrir um câncer, Ted enviou para publicação uma coletânea de poemas intitulada "Cartas de Aniversário". No livro, em poemas magistrais, Ted relata as muitas dores e algumas delícias no casamento com Sylvia. Em um dos poemas, Ted fala sobre a obsessão pelo suicídio (Sylvia já havia tentado se matar em 1953): "...não entendia ainda/ que a morte a debater-se de um lado para o outro/ dentro de sua cabeça, tinha de pousar em algum lugar."

Em outro poema, Ted relata a experiência do casal em consultar espíritos através da "brincadeira do copo". A certa altura, Sylvia pergunta ao espírito se eles serão famosos, no que o espírito responde: "A fama virá. Especialmente para você./ A fama é inevitável. E quando ela vier/ você já terá pago por ela com a sua felicidade,/ o seu marido e a sua vida."

Em processo de naufrágio, por muito pouco Sylvia não levou Ted. Não há saída para os que se apoiam nos naufragados. Não há poesia que nos ajude a libertar um ser "naufragando-se".



CARTAS DE ANIVERSÁRIO
Ted Hughes
Ed. Record
399 pg
R$ 9,90

http://bit.ly/o1z2DC

sábado, 17 de setembro de 2011

O Divisor


Continuo pensando em você - o que é ridículo.
Estes anos entre nós como um mar.
E a dignidade que veio com o tempo
impediria meu lápis sobre o papel.
O som estava ligado; você pediu os Stones;
conseguiu, conseguiu café fresco, conversa.
As cortinas cerradas guardavam uma noite selvagem.
Continuo pensando nos seus olhos, suas mãos.
Não há razão para isto, nenhuma.
Você diria que não posso ser o que não sou,
mesmo que eu não possa ser o que sou.
Onde isso nos leva? O que podemos fazer?
O silêncio após Jagger foi como uma capa
que eu teria jogado sobre você - havia apenas
o vento, e o relógio batia enquanto você bebia,
agarrando a caneca verde entre as mãos.
Não olhe para cima assim de repente!
Como é duro não olhar você.
Chegamos ao ponto de não falar
e não se preocupar, e aquilo
foi quase feliz. Então, mais tarde,
quando você deitou sobre o cotovelo no carpete
não senti nada além de uma punhalada
de dor me dizendo o que era,
e não posso dizer para você, nem uma palavra.


(Edwin Morgan, poeta escocês.
1930 - 2010)
*Ilustração: caricatura do poeta.



terça-feira, 24 de maio de 2011

VAN GOGH - Poema de Marcus Accioly

Ó Van Gogh, cortei a tua orelha
e assei a tua mão. Quis o destino
que eu andasse contigo, de parelha,
por isso entrei no rol dos assassinos.

Não sei pintar, mas ouço a cor vermelha,
ouço o tom do amarelo desatino,
ouço o traço de fogo da centelha
do teu pincel e vejo o som dos sinos.

Tenho os teus olhos nos ouvidos. Só
dissequei tua vida até o pó
para que o pó voltasse a ser caminho.

Depois que dei o tiro no teu peito,
vivo de vinho e sangue satisfeito:
ébrio de sangue e bêbado de vinho.

(Marcus Accioly. In: Daguerreótipos)

O amor, este belo e cruel paradoxo



O TORRÃO E O SEIXO

"O amor jamais a si quer contentar,
não tem cuidado algum com o que é seu;
sacrifica por outro o bem-estar,
e, a despeito do inferno, erige um céu."

Esse era o canto de um torrão de terra,
pisado pelas patas da boiada;
mas um seixo, nas águas do regato,
modulava esta métrica adequada:

"O amor somente a si quer contentar,
atar alguém ao próprio gozo eterno,
sorri quando o outro perde o bem-estar,
e, a despeito do céu, ergue um inferno."

William Blake (1757-1827)

*A ilustração desse post foi feita pelo próprio Blake, para a primeira edição do seu "The marriage of heaven and hell".

segunda-feira, 25 de abril de 2011

As palavras sabem doer

A despeito da crítica, sobretudo a mais identificada com um certo bairrismo provinciano, acho Alberto da Cunha Melo um poeta irregular. Fraco no início, excepcional da metade para o fim de sua carreira literária. Deixou um legado de grandes poemas para a língua portuguesa. Além disso, todos os que o conheceram são unânimes em defini-lo como uma figura humana solidária, afetuosa e de uma generosidade ímpar.

Relendo agora a colossal antologia "Pernambuco, terra da poesia", editada por Antônio Campos e Cláudia Cordeiro, me deparo com Dual, poema belíssimo, onde Alberto abre o seu inventário de mortes possíveis. Como o poema é longo, deixo para degustação apenas algumas dessas mortes.

MORTO PELO MUITO

O mais, o mosto,
o gás de uma montanha
de laranjas apodrecidas;
e pelo pouco,
o bago disputado
em soluços nos calabouços;

MORTO PELA FÊMEA

que me pede uma jantar
 e uma boa lembrança
e talvez peça muito;
e, pela outra
que me pede a eternidade
e talvez peça nada;

MORTO PELA VIRTUDE

essa tanga de velha
e desgastada platina;
e pelo pecado,
a notícia da única
e inexplicável
humildade de Deus;

(Alberto da Cunha Melo)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Baudelaire, a alma do outro mundo

Baudelaire foi um homem sombrio, martirizado pelas dores de uma sífilis mal tratada. Morto por ela e suas consequências. Como poeta, foi um gigante. "As flores do mal", livro magnífico em sua concepção, permaneceu proibido na França por vários anos.

Na ilustração deste post, em primeiro plano, Baudelaire. Atrás, como uma sombra enigmática, Edgar Allan Poe. Desconhecido até chegar às mãos de Baudelaire, Poe era um escritor obscuro e esquecido no fundo de um copo de absinto. Baudelaire transformou-lhe no que é hoje, um autor a influenciar gerações. 

Por enquanto, contentemo-nos com um pouco da fragrância obscena e libidinosamente demoníaca das "Flores do Mal".

A ALMA DO OUTRO MUNDO

Como os anjos de ruivo olhar,
à tua alcova hei de voltar
e junto a ti irei sem ruído
na noite de sombra e olvido;

e eu te darei, morena e nua,
beijos frígidos como a lua,
carícias de serpente nova
a despertar da orla da cova.

Chegando o amanhecer sombrio,
verás o meu lugar vazio,
que será sempre frio e quedo.

Como os outros pela virtude,
sobre tua vida e juventude,
quero reinar pelo medo!

(Charles-Pierre Baudelaire, 1821-1867)

quinta-feira, 31 de março de 2011

O amor, o desprezo e a esperança

Guillaume Apollinaire nasceu a 26 de agosto de 1880, em Roma. Filho de pai italiano e mãe polonesa, foi levado, ainda criança, para morar em Paris. Em 1914, naturalizou-se francês e engajou-se como voluntário na Primeira Guerra Mundial. Debilitado por um ferimento de guerra, Apollinaire sucumbiu à gripe espanhola em 1918.

Em seus versos, Apollinaire dispensa a pontuação. Foi pioneiro na composição de poemas visuais ou concretos, chamados de ideogramáticos. Essa produção específica ele reuniu no livro "Calligrames". Foi moderno antes dos modernos. Inaugurou a modernidade com pompa e tambores. Dizia: "Nunca esquecerei esta viagem noturna em que nenhum de nós disse uma palavra". Esta viagem noturna que é a própria poesia.



O amor, o desprezo e a esperança (trecho)

Eu te peguei junto ao meu peito como uma pomba que uma menina asfixia sem saber
Eu te peguei com toda a tua beleza tua beleza mais rica que todos os garimpos da Califórnia o foram no tempo da febre do ouro
Enchi minha avidez sensual de teu sorriso de teus olhares de teus gemidos
Possuí tive ao meu dispor o teu orgulho mesmo quando te mantinhas agachada e sofrias meu poder e minha dominação
Pensei ter tudo isto e era só um prestígio
E fico igual a Íxion depois que ele fez amor com o fantasma de nuvens feito à semelhança daquela que chamam Hera ou Juno a invisível
E quem pode agarrar as nuvens quem pode pôr a mão sobre uma miragem e que se engana aquele que crê encher os braços do azul celeste
Acreditei possuir toda a tua beleza e tive só o teu corpo
O corpo infelizmente não tem a eternidade
O corpo tem a função de gozar mas não tem o amor
E é em vão agora que tento abraçar teu espírito
Ele foge ele me foge de todo lugar como um nó de serpentes que se desfaz
E teus belos braços no longínquo horizonte são cobras cor de aurora que se enrolam em sinal de adeus
Fico confuso fico confundido
Me sinto cansado deste amor que você despreza
Sinto vergonha deste amor que desprezas tanto
O corpo não vai sem a alma
E como poderei esperar reencontrar teu corpo de antes já que tua alma está tão longe de mim

E que o corpo se juntou à alma
Como fazem todos os corpos vivos
Ó tu que eu só possuí morta

(Guillaume Apollinaire - extraído do livro "Álcoois")

quarta-feira, 30 de março de 2011

Poesia francesa radioativa

Flaubert gostava de afirmar que a literatura seria a única forma de suportar a existência, torná-la menos intragável para os paladares mais refinados. Neste sentido, a literatura francesa sempre foi pródiga para com a humanidade. De Victor Hugo a Proust, de François Villon ao próprio Flaubert, passando por Rousseau, Sade, Artaud, e tantos outros, os franceses sempre ajudaram a mitigar nossos sofrimentos.

Mas é na poesia que a língua francesa estala com mais força o seu chicote. Poetas como Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, Apollinaire e Breton, simplesmente inventaram aquilo que se convencionou chamar de "poesia moderna". Livros como "As flores do mal", "Uma temporada no inferno", "Álcoois" e o poema "Um lance de dados", serviram como um terremoto grau 100 na escala richter da poesia universal. Peço desculpas pelo clichê da comparação, mas foi a imagem mais próxima que me veio no momento.

Influenciaram tudo que se escreveu depois. Talvez por séculos essa influência permaneça. Assim como o plutônio, repousado numa folha de alface japonês, que só nos deixará após 40 mil anos compartilhando nossa existência. A esses poetas "plutonianos", a minha frágil homenagem e perpétua reverência. 

*Na ilustração, Guillaume Apollinaire. E antes que alguém reclame,  Apollinaire nasceu na Itália, mas naturalizou-se Francês, país pelo qual lutou na primeira guerra mundial.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Conversa com a minha musa


Escritor, poeta e ensaísta português, natural de Mexilhoeira Grande, Nuno Júdice é uma das grandes vozes líricas contemporâneas da língua portuguesa.

CONVERSA COM A MINHA MUSA

Dizes-me que tenho uma visão negra do mundo, quando
o frio das imagens se sobrepõe à alegria que devia nascer
da manhã. Conversemos sobre isto: a poesia faz-se sobre
o ruído do mar, mesmo quando o mar está longe, e
as ondas rebentam dentro das paredes que me
rodeiam, enquanto uma espuma sobe pelas madeiras
das portas, enchendo a casa de um cheiro a algas. Depois,
os versos suam um salitre de significados: limpo-os
da solidão, dos sacrifícios da memória, da surpresa
ébria dos sons. Quero que estes versos fiqem mudos
quando te virem chegar, e tu fores toda a poesia do seu
canto. Tu, a minha musa verdadeira, a quem estendo
o espelho da estrofe para que o teu rosto surja de
dentro dela, com os lábios que beijei, aprendendo
o gosto do amor. Assim, esta imagem do mundo pode
mudar a meio de um poema. Basta que tu entres por
dentro dele, batendo com as suas portas, e fazendo-me
sentir a tua presença, mesmo que estejas longe. É
um vento que sopra nas minhas veias, até à cabeça,
onde limpa as nuvens mais cinzentas, abrindo esse azul
de que as aves gostam. Tu, com quem converso sobre
o sentido da vida, ouvindo o teu riso sobre esta maré
que baixa com as vozes que o desejo submerge, enquanto
antigas gaivotas pousam numa areia de murmúrios.

Por dentro do fruto a chuva
Nuno Júdice
Ed. escrituras
159 pg
R$ 23,00

terça-feira, 15 de março de 2011

Jorge Luís Borges e as gangues de Nova York

O Argentino Jorge Luís Borges nunca figurou na minha lista de autores prediletos. Há alguns anos sequer o havia lido. Ele figurava em minha memória afetiva como o velho que questionara a qualidade de Neruda como poeta. Borges dizia que a política havia catapultado Neruda para o panteão dos grandes poetas latinoamericanos. Concordo. Neruda é um poeta menor, capaz, aqui e acolá, de alguns grandes versos.

Mais do que a polêmica sobre Neruda, me chamava a atenção um certo espectro secular de antiguidade clássica, trancafiada em grandes bibliotecas repletas de pó, que pairava sobre a aura de Borges. "Não em vão fui gerado em 1899. Meus hábitos regressam àquele século e ao anterior e procurei não esquecer minhas remotas e já esmaecidas antiguidades," afirmava o velho. 

Hollywood me conectou a Borges. Foi através do filme "Gangues de Nova York", baseado no livro homônimo de Herbert Asbury, sobre a violência, devassidão e brutalidade das gangues que mandavam na cidade entre os anos 40 e 60 do século XIX. A curiosidade pelo assunto me fez chegar, por caminhos tortuosos, à "História universal da infâmia", livro delicioso de pequenas histórias, onde Borges me apresentou ao "provedor de iniquidades" Monk Eastman, no filme, interpretado pelo ator Brendan Gleeson. "Ele era uma ruína monumental", afirmava Borges sobre Eastman.


Depois disso, uma amiga querida me trouxe de Buenos Aires um exemplar de  "Ficções", no original. A partir daí, não parei mais de devorá-lo com fervor. Vieram, na sequência, "Ensaio autobiográfico" e "Poesia", este último, reunindo os últimos sete livros de poesia publicados por Borges.

Aprecio em Borges o esteta, a escrita sobre a escritura, a paixão pelos livros e pela leitura, o culto quase que religioso às grandes bibliotecas. Decerto ainda não terá tomado o lugar de Guimarães Rosa e Dostoiévsky no topo das minhas adorações. Mas terá chegado perto, muito perto. "O tempo me ensinou certas astúcias: evitar os sinônimos, que tem a desvantagem de sugerir diferenças imaginárias; evitar hispanismos, argentinismos, arcaímos e neologismos; preferir as palavras habituais às palavras assombrosas; intercalar num relato traços circunstanciais,(...) simular pequenas incertezas, pois, se a realidade é precisa, a memória não o é; (...) lembrar que as normas anteriores não são obrigações, e que o tempo se encarregará de aboli-las." (Borges, no prólogo de "Elogio da sombra")

quinta-feira, 10 de março de 2011

A arte de viver com os dias contados

Ler “Gomorra”, do jornalista Italiano Roberto Saviano, é uma experiência multissensorial. A trajetória, os negócios, os crimes, a violência da Camorra, máfia napolitana, despertam uma invariável gama de cores, cheiros e gostos. Como na paleta de um mestre, as tintas seguem na tela oscilando entre tons de sangue coagulado e vôngole podre. Tudo reluz e não é ouro.
Partindo do porto de Nápoles, onde aportam 70% das mercadorias chinesas exportadas para a Europa, Saviano surpreende, a uma alma estupidamente Recifense como a minha, pela  semelhança e proximidade de sua descrição. O porto de Nápoles podia ser o do Recife, na embocadura do Capibaribe, e ninguém desconfiaria. “Um apêndice infectado que nunca degenerou em peritonite, sempre conservado no abdômen da costa. Há partes desérticas enclausuradas entre a água e a terra, mas que parecem não pertencer nem ao mar nem à terra. Um anfíbio de terra, uma metamorfose marinha. Adubo e lixo, anos de resíduos levados à margem pelas marés, criaram uma nova formação. Os navios descarregam suas latrinas, limpam os porões(...) E tudo se acumula na costa, primeiro como massa mole e depois crosta dura.”
Patinando entre as dezenas de clãs da Camorra, como um flâneur, um dândi invultado, Saviano vai desfiando um rosário contínuo, misturando assassinatos, drogas, negócios e tráfico. Mas o ponto forte de Gomorra está para além da arraia-miúda. Consiste no desnudamento completo dos mecanismos econômicos que engendram o poder, da máfia e dos políticos, na Itália. O aparato econômico legal que sustenta a ilegalidade.
Ler Gomorra é um exercício fundamental para entendermos a Itália de hoje. A Itália de Berlusconi e suas ‘’lolitas’’. O porto de Nápoles e os clãs camorristas nos falam mais sobre o "País da bota" do que todos os postais de Roma ou Firenze juntos. Desde 2006, quando a editora mondadori, de Milão, publicou a primeira edição do livro, Saviano vive escondido, sob escolta permanente da DIA (Divisão anti-máfia da polícia italiana). Viverá sempre assim, até ser assassinado. A máfia é paciente, esperou anos à fio para poder “explodir” o Juiz Giovanni Falcone. Esperou um pouco menos para assassinar o General Carlo Alberto Dalla Chiesa, comandante-chefe da DIA. Saberá esperar Saviano com a paciência de um felino. Com ele, não será diferente. Ao menos nos restará "Gomorra", este belo e contundente legado post-mortem. Porque “a beleza é uma armadilha, mesmo sendo a mais agradável delas.”
Obs: todas as citações foram extraídas do livro

Gomorra
Roberto Saviano
Ed. Bertrand Brasil
349 páginas

terça-feira, 1 de março de 2011

O desejo é um Deus irrequieto...

O desejo é um Deus irrequieto.
O amor é uma tempestade.
Não houve morte em que não ouvisse
a tua sombra.

Eu sei os meus caminhos de cor,
ando pelos campos na penumbra
dos dias muito frios.

O amor é um anjo caído
que o desejo mantém suspenso
em um céu de mariposas.

Há uma chuva guardada
para cada amor perdido.

A espera frágil de um coração
que margeia. Sigo à revelia
este amor. Sem ousar nunca
compreendê-lo.

O desejo como burla,
pantomima breve.
Nasci para doces ruínas.
Sem temer a morte,
com a alma ancorada
na solidão dos livros.

Estou no que não escrevo.

Rodrigo Cortez
22.12.09

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Poesia portuguesa contemporânea - Ana Hatherly

dar-se
entregar-se
o querer no outro transformar-se

cegueira esplêndida esta
vitória álacre e suma desgraça

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Poesia Portuguesa contemporânea - Herberto Helder

Herberto Helder nasceu em 1930, em Funchal, na Ilha da Madeira. Ainda vive e escreve. É, na minha modestíssima opinião, o melhor poeta Português ainda em atividade. Mais. Depois de Camões e Fernando Pessoa, é o maior poeta a escrever neste idioma que massacramos todos os dias.

Lembro, como se fosse hoje, como se estivesse lá, agora, do dia em que entrei na livraria cultura e me deparei com o colossal "Ou o poema contínuo". Lembro que na universidade havia lido algo dele, mas nada que se comparasse ao que estava ali na minha frente. Que descoberta, quanta fúria ali condensada. Lembro que passei várias noites sem dormir direito, degustando cada página, sentindo o cheiro das metáforas e suas infinitas possibilidades criativas. Acomodei-o na estante ao lado de João Cabral e Cecília Meireles, poetas que ele, Helder, admira e admite a influência. Herberto Helder nos mostra, nesse poema, como falar de amor, como soltar o grito lírico sem cair em clichês ou metáforas gastas, carcomidas. Oh! Poeta, louvo a tua voz grave de urso. Apartados pelo Atlântico, irmãos no infortúnio. 

TRÍPTICO (2º trecho)

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço -
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.

(Herberto Helder)

Ou o poema contínuo
Herberto Helder
Ed. girafa 
535 páginas
R$49,00

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

"Toda a arte aspira ser música"

Quem nunca se surpreendeu ao sentir o gosto de um cheiro? Ou respirar um aroma doce de manga madura e sentir o seu gosto como se a estivesse mordendo? Quem nunca, ao ouvir uma música, lembrou dos cheiros e sabores de alguém? Os nossos sentidos falam. E dizem muito mais a respeito do mundo do que milhares de tratados e enciclopédias. Uma obra de arte nos emociona quanto mais fale aos nossos sentidos.

Depois de perceber isto é que pude compreender a real grandeza do título deste post, retirado de uma citação do crítico Americano Walter Pater. Ele argumenta sobre a primazia da música sobre todas as outras expressões artísticas. Desde um quadro, um poema, uma escultura, tudo buscaria o ritmo e a harmonia (ou a ausência destes) inerentes à música. Beethoven estava praticamente surdo quando terminou a 9ª Sinfonia. Nunca a ouviu terminada. Apenas intuía sua melodia grandiosa, respirava seu movimento pelas hastes dos violinos. Ainda que Beethoven tenha sido um gigante, ninguém ousou tocar a superfície da música, penetrar em seu centro, como Fernando Pessoa o fez através da poesia. Sobretudo através dele mesmo, não com os heterônimos. Sobretudo no livro "Cancioneiro", do qual extraí o poema abaixo:

Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
enche-se de lágrimas
meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
nessa minha infância
que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
fui-o outrora agora.

[Fernando Pessoa - anterior a 1924]

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Oscar Wilde ou "O sedutor que apodrece"

Escrevi este poema em 2005, após reler "A balada do cárcere de Reading", de Oscar Wilde. O livro foi publicado em Londres, a 13 de Fevereiro de 1898, pela livraria Leonard Smithers, após ter recusada sua publicação por diversas outras editoras.

Depois de um conturbado e ruidoso processo judicial por sodomia, e suas nefastas reverberações, Wilde foi condenado à prisão em Abril de 1895. Condenado pela hipocrisia moralista da "Era Vitoriana", ele foi trancafiado, primeiro na prisão de Holloway, passando depois por Newgate, Reading e, por fim, Pentoville. Em Reading, Wilde ficou impressionado com os olhos tristes de um soldado da Real Guarda Montada, batalhão de elite do exército Inglês, condenado à forca pelo assassinato de sua jovem mulher.

Fico imaginando o olhar de quem sabe da proximidade da morte. Seus passos indecisos rumo à forca.

Diferente de Wilde, nunca tive essa oportunidade. Mas imagino-a. E para esse infeliz, tão distante e tão próximo em seu infortúnio, escrevi este poema:

Ainda que o cadafalso
seja apenas leve sombra
por entre as cerejeiras,
esticai a corda,
áspera, ao extremo.

Ninfa no poço
úmido
do teu pescoço.
Acordai os velames.
As tábuas a ranger
rompendo o silêncio dos girassóis.
Doce lira
que se expande
quando esperavas tempestade.

Ó enforcado de todas as horas,
o teu hálito degredado
caminhará
por ilhas bruscas
de deitar demônios.

Segue o ruído de tua alma,
sopro do que és.
Não obstante, seguirás
por um caminho de medrar lilases.

Ainda que sambemos
sobre o teu esquecimento.

Da inutilidade de manter um blog

Na história da literatura, são inúmeros os casos de poetas silenciados. Lautréamont e Rimbaud são os mais emblemáticos. Não apenas pela força do que "diziam" em seus versos, mas, sobretudo, pelo gigantesco silêncio que gravitava em torno deles. Fernando Pessoa, poeta mais citado do que realmente lido, dizia que "Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espetáculo."  Um intervalo de solidões compartilhadas no silêncio do efêmero.
Um silêncio que aumenta com a intensidade da penumbra. Grandes poetas, e poderia citar aqui uma infinidade deles, não são, não foram lidos em suas respectivas épocas. Alguns, nem a posteridade reconheceu, a exemplo de Tristán Corbiére e Julian Laforgue. É sobre este silêncio, esta ausência de interlocutores, a que me refiro quando questiono a inutilidade de um blog. Sobretudo a de um que se disponha a falar sobre literatura, poesia, música, cinema e outras futilidades afins, tão desimportantes no mundo de hoje.

Com a ascensão das redes sociais, muito se fala, muito se discute, a respeito do fim dos blogues, esse anfiteatro cibernético da vaidade humana. Inaugurar, hoje, um blog, é seguir na contramão da pseudomodernidade. Nunca gostei de hegemonias. Sempre me identifiquei com vagabundos e degredados. Talvez por isso, esteja aqui. Ainda que sem leitores. Ainda que silenciado. Mas assim como Rimbaud, Lautréamont e tantos outros, não saberia calar a minha voz. Ainda que esta não esteja à altura grandiosa daqueles.