quinta-feira, 10 de março de 2011

A arte de viver com os dias contados

Ler “Gomorra”, do jornalista Italiano Roberto Saviano, é uma experiência multissensorial. A trajetória, os negócios, os crimes, a violência da Camorra, máfia napolitana, despertam uma invariável gama de cores, cheiros e gostos. Como na paleta de um mestre, as tintas seguem na tela oscilando entre tons de sangue coagulado e vôngole podre. Tudo reluz e não é ouro.
Partindo do porto de Nápoles, onde aportam 70% das mercadorias chinesas exportadas para a Europa, Saviano surpreende, a uma alma estupidamente Recifense como a minha, pela  semelhança e proximidade de sua descrição. O porto de Nápoles podia ser o do Recife, na embocadura do Capibaribe, e ninguém desconfiaria. “Um apêndice infectado que nunca degenerou em peritonite, sempre conservado no abdômen da costa. Há partes desérticas enclausuradas entre a água e a terra, mas que parecem não pertencer nem ao mar nem à terra. Um anfíbio de terra, uma metamorfose marinha. Adubo e lixo, anos de resíduos levados à margem pelas marés, criaram uma nova formação. Os navios descarregam suas latrinas, limpam os porões(...) E tudo se acumula na costa, primeiro como massa mole e depois crosta dura.”
Patinando entre as dezenas de clãs da Camorra, como um flâneur, um dândi invultado, Saviano vai desfiando um rosário contínuo, misturando assassinatos, drogas, negócios e tráfico. Mas o ponto forte de Gomorra está para além da arraia-miúda. Consiste no desnudamento completo dos mecanismos econômicos que engendram o poder, da máfia e dos políticos, na Itália. O aparato econômico legal que sustenta a ilegalidade.
Ler Gomorra é um exercício fundamental para entendermos a Itália de hoje. A Itália de Berlusconi e suas ‘’lolitas’’. O porto de Nápoles e os clãs camorristas nos falam mais sobre o "País da bota" do que todos os postais de Roma ou Firenze juntos. Desde 2006, quando a editora mondadori, de Milão, publicou a primeira edição do livro, Saviano vive escondido, sob escolta permanente da DIA (Divisão anti-máfia da polícia italiana). Viverá sempre assim, até ser assassinado. A máfia é paciente, esperou anos à fio para poder “explodir” o Juiz Giovanni Falcone. Esperou um pouco menos para assassinar o General Carlo Alberto Dalla Chiesa, comandante-chefe da DIA. Saberá esperar Saviano com a paciência de um felino. Com ele, não será diferente. Ao menos nos restará "Gomorra", este belo e contundente legado post-mortem. Porque “a beleza é uma armadilha, mesmo sendo a mais agradável delas.”
Obs: todas as citações foram extraídas do livro

Gomorra
Roberto Saviano
Ed. Bertrand Brasil
349 páginas

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