quinta-feira, 31 de março de 2011

O amor, o desprezo e a esperança

Guillaume Apollinaire nasceu a 26 de agosto de 1880, em Roma. Filho de pai italiano e mãe polonesa, foi levado, ainda criança, para morar em Paris. Em 1914, naturalizou-se francês e engajou-se como voluntário na Primeira Guerra Mundial. Debilitado por um ferimento de guerra, Apollinaire sucumbiu à gripe espanhola em 1918.

Em seus versos, Apollinaire dispensa a pontuação. Foi pioneiro na composição de poemas visuais ou concretos, chamados de ideogramáticos. Essa produção específica ele reuniu no livro "Calligrames". Foi moderno antes dos modernos. Inaugurou a modernidade com pompa e tambores. Dizia: "Nunca esquecerei esta viagem noturna em que nenhum de nós disse uma palavra". Esta viagem noturna que é a própria poesia.



O amor, o desprezo e a esperança (trecho)

Eu te peguei junto ao meu peito como uma pomba que uma menina asfixia sem saber
Eu te peguei com toda a tua beleza tua beleza mais rica que todos os garimpos da Califórnia o foram no tempo da febre do ouro
Enchi minha avidez sensual de teu sorriso de teus olhares de teus gemidos
Possuí tive ao meu dispor o teu orgulho mesmo quando te mantinhas agachada e sofrias meu poder e minha dominação
Pensei ter tudo isto e era só um prestígio
E fico igual a Íxion depois que ele fez amor com o fantasma de nuvens feito à semelhança daquela que chamam Hera ou Juno a invisível
E quem pode agarrar as nuvens quem pode pôr a mão sobre uma miragem e que se engana aquele que crê encher os braços do azul celeste
Acreditei possuir toda a tua beleza e tive só o teu corpo
O corpo infelizmente não tem a eternidade
O corpo tem a função de gozar mas não tem o amor
E é em vão agora que tento abraçar teu espírito
Ele foge ele me foge de todo lugar como um nó de serpentes que se desfaz
E teus belos braços no longínquo horizonte são cobras cor de aurora que se enrolam em sinal de adeus
Fico confuso fico confundido
Me sinto cansado deste amor que você despreza
Sinto vergonha deste amor que desprezas tanto
O corpo não vai sem a alma
E como poderei esperar reencontrar teu corpo de antes já que tua alma está tão longe de mim

E que o corpo se juntou à alma
Como fazem todos os corpos vivos
Ó tu que eu só possuí morta

(Guillaume Apollinaire - extraído do livro "Álcoois")

quarta-feira, 30 de março de 2011

Poesia francesa radioativa

Flaubert gostava de afirmar que a literatura seria a única forma de suportar a existência, torná-la menos intragável para os paladares mais refinados. Neste sentido, a literatura francesa sempre foi pródiga para com a humanidade. De Victor Hugo a Proust, de François Villon ao próprio Flaubert, passando por Rousseau, Sade, Artaud, e tantos outros, os franceses sempre ajudaram a mitigar nossos sofrimentos.

Mas é na poesia que a língua francesa estala com mais força o seu chicote. Poetas como Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, Apollinaire e Breton, simplesmente inventaram aquilo que se convencionou chamar de "poesia moderna". Livros como "As flores do mal", "Uma temporada no inferno", "Álcoois" e o poema "Um lance de dados", serviram como um terremoto grau 100 na escala richter da poesia universal. Peço desculpas pelo clichê da comparação, mas foi a imagem mais próxima que me veio no momento.

Influenciaram tudo que se escreveu depois. Talvez por séculos essa influência permaneça. Assim como o plutônio, repousado numa folha de alface japonês, que só nos deixará após 40 mil anos compartilhando nossa existência. A esses poetas "plutonianos", a minha frágil homenagem e perpétua reverência. 

*Na ilustração, Guillaume Apollinaire. E antes que alguém reclame,  Apollinaire nasceu na Itália, mas naturalizou-se Francês, país pelo qual lutou na primeira guerra mundial.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Conversa com a minha musa


Escritor, poeta e ensaísta português, natural de Mexilhoeira Grande, Nuno Júdice é uma das grandes vozes líricas contemporâneas da língua portuguesa.

CONVERSA COM A MINHA MUSA

Dizes-me que tenho uma visão negra do mundo, quando
o frio das imagens se sobrepõe à alegria que devia nascer
da manhã. Conversemos sobre isto: a poesia faz-se sobre
o ruído do mar, mesmo quando o mar está longe, e
as ondas rebentam dentro das paredes que me
rodeiam, enquanto uma espuma sobe pelas madeiras
das portas, enchendo a casa de um cheiro a algas. Depois,
os versos suam um salitre de significados: limpo-os
da solidão, dos sacrifícios da memória, da surpresa
ébria dos sons. Quero que estes versos fiqem mudos
quando te virem chegar, e tu fores toda a poesia do seu
canto. Tu, a minha musa verdadeira, a quem estendo
o espelho da estrofe para que o teu rosto surja de
dentro dela, com os lábios que beijei, aprendendo
o gosto do amor. Assim, esta imagem do mundo pode
mudar a meio de um poema. Basta que tu entres por
dentro dele, batendo com as suas portas, e fazendo-me
sentir a tua presença, mesmo que estejas longe. É
um vento que sopra nas minhas veias, até à cabeça,
onde limpa as nuvens mais cinzentas, abrindo esse azul
de que as aves gostam. Tu, com quem converso sobre
o sentido da vida, ouvindo o teu riso sobre esta maré
que baixa com as vozes que o desejo submerge, enquanto
antigas gaivotas pousam numa areia de murmúrios.

Por dentro do fruto a chuva
Nuno Júdice
Ed. escrituras
159 pg
R$ 23,00

terça-feira, 15 de março de 2011

Jorge Luís Borges e as gangues de Nova York

O Argentino Jorge Luís Borges nunca figurou na minha lista de autores prediletos. Há alguns anos sequer o havia lido. Ele figurava em minha memória afetiva como o velho que questionara a qualidade de Neruda como poeta. Borges dizia que a política havia catapultado Neruda para o panteão dos grandes poetas latinoamericanos. Concordo. Neruda é um poeta menor, capaz, aqui e acolá, de alguns grandes versos.

Mais do que a polêmica sobre Neruda, me chamava a atenção um certo espectro secular de antiguidade clássica, trancafiada em grandes bibliotecas repletas de pó, que pairava sobre a aura de Borges. "Não em vão fui gerado em 1899. Meus hábitos regressam àquele século e ao anterior e procurei não esquecer minhas remotas e já esmaecidas antiguidades," afirmava o velho. 

Hollywood me conectou a Borges. Foi através do filme "Gangues de Nova York", baseado no livro homônimo de Herbert Asbury, sobre a violência, devassidão e brutalidade das gangues que mandavam na cidade entre os anos 40 e 60 do século XIX. A curiosidade pelo assunto me fez chegar, por caminhos tortuosos, à "História universal da infâmia", livro delicioso de pequenas histórias, onde Borges me apresentou ao "provedor de iniquidades" Monk Eastman, no filme, interpretado pelo ator Brendan Gleeson. "Ele era uma ruína monumental", afirmava Borges sobre Eastman.


Depois disso, uma amiga querida me trouxe de Buenos Aires um exemplar de  "Ficções", no original. A partir daí, não parei mais de devorá-lo com fervor. Vieram, na sequência, "Ensaio autobiográfico" e "Poesia", este último, reunindo os últimos sete livros de poesia publicados por Borges.

Aprecio em Borges o esteta, a escrita sobre a escritura, a paixão pelos livros e pela leitura, o culto quase que religioso às grandes bibliotecas. Decerto ainda não terá tomado o lugar de Guimarães Rosa e Dostoiévsky no topo das minhas adorações. Mas terá chegado perto, muito perto. "O tempo me ensinou certas astúcias: evitar os sinônimos, que tem a desvantagem de sugerir diferenças imaginárias; evitar hispanismos, argentinismos, arcaímos e neologismos; preferir as palavras habituais às palavras assombrosas; intercalar num relato traços circunstanciais,(...) simular pequenas incertezas, pois, se a realidade é precisa, a memória não o é; (...) lembrar que as normas anteriores não são obrigações, e que o tempo se encarregará de aboli-las." (Borges, no prólogo de "Elogio da sombra")

quinta-feira, 10 de março de 2011

A arte de viver com os dias contados

Ler “Gomorra”, do jornalista Italiano Roberto Saviano, é uma experiência multissensorial. A trajetória, os negócios, os crimes, a violência da Camorra, máfia napolitana, despertam uma invariável gama de cores, cheiros e gostos. Como na paleta de um mestre, as tintas seguem na tela oscilando entre tons de sangue coagulado e vôngole podre. Tudo reluz e não é ouro.
Partindo do porto de Nápoles, onde aportam 70% das mercadorias chinesas exportadas para a Europa, Saviano surpreende, a uma alma estupidamente Recifense como a minha, pela  semelhança e proximidade de sua descrição. O porto de Nápoles podia ser o do Recife, na embocadura do Capibaribe, e ninguém desconfiaria. “Um apêndice infectado que nunca degenerou em peritonite, sempre conservado no abdômen da costa. Há partes desérticas enclausuradas entre a água e a terra, mas que parecem não pertencer nem ao mar nem à terra. Um anfíbio de terra, uma metamorfose marinha. Adubo e lixo, anos de resíduos levados à margem pelas marés, criaram uma nova formação. Os navios descarregam suas latrinas, limpam os porões(...) E tudo se acumula na costa, primeiro como massa mole e depois crosta dura.”
Patinando entre as dezenas de clãs da Camorra, como um flâneur, um dândi invultado, Saviano vai desfiando um rosário contínuo, misturando assassinatos, drogas, negócios e tráfico. Mas o ponto forte de Gomorra está para além da arraia-miúda. Consiste no desnudamento completo dos mecanismos econômicos que engendram o poder, da máfia e dos políticos, na Itália. O aparato econômico legal que sustenta a ilegalidade.
Ler Gomorra é um exercício fundamental para entendermos a Itália de hoje. A Itália de Berlusconi e suas ‘’lolitas’’. O porto de Nápoles e os clãs camorristas nos falam mais sobre o "País da bota" do que todos os postais de Roma ou Firenze juntos. Desde 2006, quando a editora mondadori, de Milão, publicou a primeira edição do livro, Saviano vive escondido, sob escolta permanente da DIA (Divisão anti-máfia da polícia italiana). Viverá sempre assim, até ser assassinado. A máfia é paciente, esperou anos à fio para poder “explodir” o Juiz Giovanni Falcone. Esperou um pouco menos para assassinar o General Carlo Alberto Dalla Chiesa, comandante-chefe da DIA. Saberá esperar Saviano com a paciência de um felino. Com ele, não será diferente. Ao menos nos restará "Gomorra", este belo e contundente legado post-mortem. Porque “a beleza é uma armadilha, mesmo sendo a mais agradável delas.”
Obs: todas as citações foram extraídas do livro

Gomorra
Roberto Saviano
Ed. Bertrand Brasil
349 páginas

terça-feira, 1 de março de 2011

O desejo é um Deus irrequieto...

O desejo é um Deus irrequieto.
O amor é uma tempestade.
Não houve morte em que não ouvisse
a tua sombra.

Eu sei os meus caminhos de cor,
ando pelos campos na penumbra
dos dias muito frios.

O amor é um anjo caído
que o desejo mantém suspenso
em um céu de mariposas.

Há uma chuva guardada
para cada amor perdido.

A espera frágil de um coração
que margeia. Sigo à revelia
este amor. Sem ousar nunca
compreendê-lo.

O desejo como burla,
pantomima breve.
Nasci para doces ruínas.
Sem temer a morte,
com a alma ancorada
na solidão dos livros.

Estou no que não escrevo.

Rodrigo Cortez
22.12.09